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Showing posts from September, 2014

Estrangeira

Acho que desconhecia o verdadeiro significado desta palavra até ao momento em que percebi que não só as pessoas à minha volta falam uma língua diferente: os gatos, os cães, as vacas, as ovelhas, os cavalos, também. É verdade, toda a criação fala uma outra língua. A primeira vez que tomei conhecimento do facto foi com um simples espirro. Estava numa aula de inglês, onde aprendíamos algumas canções, e uma delas era a famosa: "Ring-a-ring of roses  A pocketful of posies  A-tishoo! A-tishoo!  We all fall down..."  Estava a preparar-me para perguntar o que queria dizer aquela palavra esquisita, "A-tishoo!" , quando de súbito os meus ouvidos entenderam, ao ouvir a música numa gravação. Afinal era um espirro! De então para cá a surpresa tem sido constante e completa: os cães, nas raras vezes em que ladram, não fazem ão, ão! nem tão pouco béu, béu!, mas sim ruff, ruff! ou woof, woof! O miar dos gatos nem destoa assim tanto: em vez do miau, fru fru, temos um meo

My darling

Em Inglaterra toda a gente se chama de querido sem se conhecer de lado nenhum. É perfeitamente natural utilizar o dear em contexto formal, nomeadamente nas cartas em que nós apenas nos atrevemos a utilizar o V. Exa para cá e o Exmo. Sr. para lá. Mas as coisas não ficam por aqui. Quando o carteiro vos traz uma encomenda registada, e se despede com um see you, sweetheart, não precisam de corar. E se a senhora do centro de saúde nos brinda com um my darling no meio da troca de palavras que medeia encontrar a nossa ficha no computador e fazer o registo, não, não está a atirar-se a nós. É que aqui toda a gente se trata assim, é normalíssimo! Ao princípio estranhei, até pensei que não tinha ouvido bem. My dear? Ele disse my dear?, pensei, enquanto falava ao telefone com um funcionário da British Gas. Imaginem o que é telefonarem para a Portugal Telecom ou para a EDP e de lá dizerem, Oh, querido, obrigada por ter esperado! Ou na farmácia o empregado dizer: Aqui está o seu pedido, amor, de

O homem do xadrez

Ficava horas intermináveis sentado à mesa daquele café, tendo por única companhia um tabuleiro de xadrez. Jogava. Em silêncio, lentamente, como quem peneira a luz da tarde até esta se transformar em poeira fina de estrelas, lançada para cima do incêndio do crepúsculo. E assim o tempo passava, como passavam os burros no calor da estrada, lá fora, carregados de sacas a abarrotar de cereais e legumes, acompanhados por homens de idade curvilínea; ao mesmo tempo que a tarde se demorava nos pequenos remoinhos de vento seco que levantavam a poeira do chão. Jogava sozinho. Movia uma peça, e depois, com um suspiro, tomava a posição do adversário. Mas não se limitava a tomar o lugar do outro; aquilo exigia uma transacção plena de estados de alma. Para nos defrontarmos connosco próprios precisamos de vestir a pele do inimigo, dizia para os seus botões, enquanto os desabotoava. O xadrez é muito mais do que um jogo inocente de estratégias; o xadrez, é, acima de tudo, a essência da estratégia. Estr

O país dos contrários

À primeira vista parece que é só isso: os carros andam no lado oposto da estrada. Continuamos a pensar assim até ao momento em que nos sentamos ao volante, no lugar que, para nós, continua a ser o do passageiro. Já experimentaram? O que é que tem? É simples: lembram-se daquela sensação, pós tirar a carta, dos primeiros dias no trânsito? O nervosismo, a atrapalhação, a lentidão dos gestos, e estar constantemente a ouvir buzinas e nomes menos próprios? Porquê? Ainda não perceberam? Então vá lá que eu dou mais uma pista: se o volante está à direita, isso significa que a mão que se ocupa da caixa de velocidades é... isso mesmo: a esquerda! Mas as coisas não ficam por aqui, e o melhor é resumir assim: é tudo ao contrário (menos os pés, felizmente que não se lembraram dos pedais, que aí é que a gente dava em doida!), o que aí fazemos com uma mão, aqui fazemos com a outra, a saber: piscas, luzes, limpa pára-brisas, tudo, tudo, meus filhos, até aquele sinal que fazemos às pessoas paradas no p

Livros escolares? O que é isso?

Em Inglaterra, nas escolas primárias, não há livros escolares. As salas de aula estão cheias de livros: contos e rimas infantis, estórias com e sem ilustrações. Há-os em toda a parte, desde a creche ao sexto ano, devidamente adaptados à idade das crianças. Depois cada escola tem a sua biblioteca. Só encontramos livros escolares na escola secundária. Estes, no entanto, são propriedade da escola, e transitam de ano para ano, passando de mão em mão, entre os alunos. Deste modo, é possível um percurso escolar sem gastos em livros. Com o material passa-se a mesma coisa: as salas estão repletas de gavetas cheias de tudo o que é necessário. Tesoura, cola, tintas, pincéis, papel, canetas, lápis, borrachas, afias, réguas, esquadros, compassos, transferidores, sólidos geométricos, papéis de fantasia para corte e colagem, jogos variados destinados a auxiliar a aprendizagem, tudo o que possam imaginar, está na escola. Os livros auxiliares são disponibilizados em fotocópias, e cada criança tem